26/02/2018

O amor do terapeuta


por Catarina Nascimento Rodrigues


Publicado originalmente no Jornal Público de 1 de Junho de 2017


Para que seja possível uma Análise bem sucedida não basta apenas a técnica psicanalítica. A meu ver, a retoma do desenvolvimento só é possível porque, na relação com o terapeuta, se sente, de forma inequívoca, como só o inconsciente pode saber, o entusiasmo e o afecto deste, que, na escuta atenta e interessada, sente esperança e prazer em estar/conhecer/acompanhar as mudanças/dores/conquistas/decepções do seu paciente. Sem julgamento e sem expectativa. Mas com aposta. Com criatividade e persistência no alimento do laço afectivo criado face às desesperanças e descrenças do paciente. Com esperança no futuro e na realização pessoal deste. Tudo características do que designo por amor do terapeuta.

É a arte da nova relação que se instala entre aquele paciente e aquele terapeuta naquele momento das suas vidas, permitindo ao paciente uma experiência bem sucedida de ser ouvido, compreendido e estimulado. Em minha opinião, o entusiasmo e o estímulo que o terapeuta demonstra, consciente e inconscientemente, pelo seu paciente - e que nada mais é do que a resposta complementar face ao que falhou -, incentiva este último a assumir a sua agencialidade e conquistar o prazer e a realização pessoal na sua vida.

Sozinhos sobrevivemos. Com o outro, conquistamos o prazer e o sentido de viver. Vivemos com o outro. Crescemos e expandimo-nos em sociedade. Porque o reconhecimento e o orgulho do outro são “alimentos” essenciais. É a certeza da partilha e do olhar deslumbrado do outro que estimula a criatividade, a beleza e a inovação das nossas criações.

Mas, entenda-se, esse estímulo, esse incentivo por parte do terapeuta não é o mesmo que delinear um caminho para o seu paciente. É um incentivo que nasce do profundo conhecimento e da sintonia sentida com o seu paciente. Trata-se de dar voz ao paciente, numa escuta atenta e interessada daquilo que é dito de forma consciente e daquilo que se sente do que é dito de forma inconsciente – o self autêntico do paciente.

Para mim, a atenção, o interesse, o afecto real do terapeuta pelo seu paciente são o núcleo de uma relação terapêutica bem sucedida. O interesse genuíno demonstrado vem colmatar a falha primária e devolver o sentido de valor e de importância ao sujeito e, assim, permitir-lhe reconhecer-se como pessoa com valor e passível de ser gostada e admirada. Não existimos como pessoas sem essa postura interessada e amante do outro significativo. Ela é a base da vida mental e emocional. Coimbra de Matos realça neste sentido o facto de a espécie humana ser a única onde se amamenta e se ama olhos nos olhos/face a face.

Neste sentido, o terapeuta que acompanha o paciente pelo inferno emocional da sua depressão não pode ser neutro, distante, enfim, um técnico. À semelhança da relação primária, a possibilidade de olhar o terapeuta/a mãe, perscrutá-lo/a, senti-lo/a é importante para conseguir encontrar amor por si mesmo no olhar e nos gestos do seu terapeuta. Precisa ver para crer. Precisa utilizar os vários sentidos para aferir da veracidade do afecto do terapeuta. Precisa sentir o calor do seu afecto na comunicação intersubjectiva que vai acontecendo ao longo das sessões.
Para tal, o terapeuta precisa sentir-se livre para se poder implicar com autenticidade naquela relação. Precisa confiar em si mesmo e na sua intuição, assente na boa sintonia construída com o seu paciente, para encontrar a resposta única e criativa em relação àquele paciente. Não pode fechar-se na neutralidade da técnica. Precisa sentir-se livre na nova relação construída, dando-se também de forma inteira, persistente e criativa.

Relação Psicanalítica: uma relação a Olhar para o Futuro


por Catarina Nascimento Rodrigues


 Publicado originalmente no Jornal Público de 8 de Junho de 2017

Penso a relação terapêutica como uma relação de enfoque no maior auto-conhecimento do paciente (e do terapeuta, por consequência de ser um processo rico também para este), de onde resulta uma maior capacidade de se constituir como agente da sua vida. A relação terapêutica profícua permite a descoberta de novos estilos relacionais dentro do próprio e é privilegiada porque, quando se chega ao terapeuta, pelo menos uma parte da pessoa está receptiva à mudança e à auto e hetero-análise.

Muitas vezes, a mudança é já desejada pelo próprio, mas, no clima emocional em que vive, por se ter desenvolvido o que Coimbra de Matos chama o ciclo vicioso, é muito difícil consegui-la. Constituiu-se um modelo relacional de referência como resposta possível ao clima emocional oferecido pelas figuras significativas. É necessário a intervenção criativa e livre de um outro que possibilite ao sujeito ter a hipótese de desenvolver o estilo relacional desejado ou, pelo menos, sair da trama emocional enquistada. O terapeuta está numa posição privilegiada para oferecer tal experiência relacional pela sua formação profissional, mas sobretudo se se sentir profundamente interessado por aquele paciente.

Tal caminho não ocorre da noite para o dia. Necessita de uma continuidade na experiência dessa relação bem sucedida com o terapeuta para que se consolide e, assim, possa ganhar peso sobre a dor e a desconfiança na mente moldada pelas más experiências com as figuras significativas. Demora o seu tempo a que a confiança no amor/interesse genuíno do outro por nós próprios (e, consequentemente, a confiança e interesse de nós por nós próprios) tenha mais peso que a desconfiança (no sentido de perda de confiança) no outro (e em nós), assente numa experiência precoce decepcionante e desvalorizante. Demora tempo a deixarmos de nos ver no reflexo do espelho dos outros significativos e passarmos a vermo-nos noutros espelhos, que, narcisando-nos, nos permitem construir o nosso próprio espelho: vermo-nos a nós próprios. Demora tempo a perceber como esse espelho primário nos deformou e acreditar que podemos ter outra forma. Uma forma que intuímos em relação a nós próprios e que é aquela que esperamos que o terapeuta reconheça e com a qual se relacione… dando menos enfoque à forma de relacionar doente e enquistada… que acaba, numa análise bem sucedida, por perder a dominância.

Provavelmente, existe um limite para a transformação possível pela psicoterapia. Existe provavelmente um núcleo que, tendo sido instituído precocemente, antes da palavra, como em situações de quadros de depressão, é difícil reverter. O olhar da terapia é, por isso, para mim, para o futuro. Só no futuro podemos fazer diferente. Mais conhecedores de nós próprios e com novas ferramentas relacionais, emergentes no afecto e na sintonia da relação terapêutica. Por isso, falo de esperança. Esperança num futuro diferente. Mais feliz, num sujeito mais capaz de se sentir agente da sua vida, com maior conhecimento de si mesmo e dos outros, mais livre para optar nas relações que o rodeiam.

O trabalho psicoterapêutico é acompanhar o paciente na sua auto-análise. Neste processo existe alívio e cura do sintoma… mas é a relação afectiva estabelecida entre terapeuta e paciente que traz um novo estilo relacional que será o grande motor de mudança do sujeito. Ou seja, a pessoa não muda apenas porque compreende a sua história. A pessoa muda porque existe uma relação onde, sentindo-se amado/apreciado, compreendido e estimulado, ganha motivação/impulso para se lançar na sua própria vida, para dar acção ao seu projecto de vida: aquilo que acredita/sente que é o que o faz sentir realizado e feliz.

É possível anular completamente a tristeza? Penso que não. A maior auto-consciência não anula a tristeza de sentir que, com certas figuras significativas, o sujeito não consegue ter uma relação de intimidade, confiança e desenvolvimento. Mas aceita-se a realidade. Não é possível. E, por isso, talvez se sofra menos. Diminui a culpa. Aumenta a esperança na procura de novos parceiros de desenvolvimento.

O ódio na Depressão


por Catarina Nascimento Rodrigues
Publicado originalmente no Jornal Público de 25 de Maio de 2017 



Na minha escuta psicoterapêutica, encontro muitas vezes, nas palavras dos meus pacientes, profunda solidão. Mesmo que, na sua vida, se encontrem rodeados de pessoas, incluindo pessoas significativas. Solidão consequência de se sentirem desamparados, sós face às suas necessidades emocionais. Não estou, pois, a falar da solidão essencial, na medida em que estamos sempre irremediavelmente connosco próprios, mas sós no sentido de procurarmos um outro e não encontrarmos ressonância emocional para as nossas necessidades emocionais. O sujeito não se sente prioridade na mente do outro, nem nela sente ter lugar de valor e de orgulho… ou não sente no outro a desejada empatia e vontade de despender tempo emocional e/ou físico na tentativa de compreensão do seu sofrimento ou compartilhar a sua alegria.

Esse lugar de acolhimento, empatia, amor, privilégio, orgulho por parte do outro, nomeadamente de um outro significativo, é a grande procura da vida/mente humana. Porque sabemos intimamente que é nesse lugar que nos sentimos bem, nos expandimos e nos superamos a nós próprios. Como já aludi em artigos anteriores, o entusiasmo do outro, o seu carinho/afecto e o seu orgulho por nós funciona como poderoso trampolim para o desenvolvimento.

Os outros resultam, pois, de uma procura. Aliás, desde que nascemos que nos procuramos ligar ao outro, física e, sobretudo, emocionalmente. A ligação emocional é alimento da alma. Ela dá ânimo, esperança, tranquilidade, segurança para enfrentarmos os desafios da nossa vida. Confere-nos instrumentos para voltarmos a ser nós próprios depois das tempestades por que todos passamos na vida.

A relação amante é, pois, profundamente interessada, persistente e criativa. Faz-nos expandir e desenvolver. Na sua ausência, fica a frustração e a angústia de uma necessidade emocional não acolhida. E gera-se o terreno fértil para a emergência do Ódio - em relação ao outro, que não corresponde, e a si próprio, que é tão mau ou insuficiente que não merece o amor/resposta do outro.

As vozes críticas internas, numa mente emocionalmente só e que se sente sem ou com pouco valor para os outros, encontram terreno fértil para se expandirem e tornarem-se dominantes. Arrasam tudo. Divertem-se a humilhar e a aniquilar o sujeito. Todos os actos e comportamentos são vistos numa perspectiva de desvalor e de crítica. Por vezes, a crítica interna é tão forte que o sujeito sente vontade de se bater, fazer-se mal. O ódio e o desprezo em relação a si mesmo são arrasadores. E muito difíceis de travar. O lado amante de si mesmo não tem força contra estes impulsos destruidores. Ou seja, o sujeito pode ter consciência destes pensamentos auto-destrutivos, auto-castigadores, mas não conseguir impedi-los. Na realidade, não tem amor próprio onde se agarrar… Acredita e sente-se merecedor de tal humilhação.

A vergonha que aparece depois da tempestade de ódio contra si mesmos é também ela avassaladora. Depois do desprezo/desespero fica o sentimento de solidão profunda e de desesperança.

Não é fácil procurar ajuda nesta fase. A vergonha e o desprezo são tão intensos que por vezes sobrepõe-se a necessidade de se fechar sobre si mesmo… Na melhor das hipóteses, este fechar-se em si próprio constitui-se como um caminho interior e pessoal, ainda que muito doloroso e desgastante emocionalmente, na procura de ajudar-se a si mesmo, perscrutando o que se passa emocionalmente consigo. Há coisas que provavelmente só contamos a nós próprios. Essa possibilidade de uma relação absolutamente honesta e transparente connosco pode ser dura… mas é também parte do caminho.
Mas é impossível fazer todo o caminho sozinho. Para que não vença o ódio, é preciso um outro capaz de nos amar a quem nos possamos ligar e a quem possamos depositar os nossos pensamentos desorganizados, os nossos sentimentos perturbadores, o nosso ódio em relação a nós próprios e ao mundo… e que não fique contaminado com essas emoções. Mantenha a esperança e o amor por nós. Essa é a função do terapeuta.

Origem da Depressão


por Catarina Nascimento Rodrigues

Publicado originalmente no Jornal Público a 18 de Maio de 2017



Tenho aprendido com os meus pacientes que a depressão é sempre uma depressão infantil, na medida em que radica numa dinâmica relacional primária sentida como desvalorizante do próprio na infância. A continuidade e coerência dessa experiência tem impacto na mente do bebé ou da criança, no sentido de ficar imprimida na mente. Efectivamente, o conhecimento que o bebé tem das figuras parentais é um conhecimento emocional fino, detectando emoções que, nos pais, podem, inclusive, ser inconscientes. Coimbra de Matos tem uma expressão feliz neste sentido: a criança não aceita a mentira. O bebé e a criança são verdadeiros e sentem a verdade das emoções. Não há esconderijo emocional para os sentimentos dos pais. O bebé sabe se os seus pais gostam ou não dele. E sabe-o desde a mais tenra idade, acumulando experiência através do modo de lhe pegam, tocam, embalam, falam, cuidam, alimentam e brincam.

Não há nenhum mistério aqui: o bebé sabe a verdade, porque ao nível do não-verbal – que é o meio comunicacional privilegiado para o bebé – não conseguimos mentir/disfarçar os nossos sentimentos. Somos traídos pelo não-verbal, como tão bem chamou a atenção Freud.

Trata-se, pois, de um vivido essencialmente emocional, no sentido de não ter de ser verbalizado de forma directa pelos pais, mas cuja autenticidade radica na comunicação intersubjectiva. “Eu sinto que os meus pais não apostam muito em mim com futuro homem. Não acham que eu perceba de política, não me vêm como capaz de ganhar a vida por mim mesmo, sem a ajuda deles. E sinto isso de formas tão subtis como na maneira como falam comigo e como falam com amigos meus, como enaltecem as capacidades dos meus pares. Eu fico na sombra”.

Por isto, a depressão não é um luto. Não se trata da dor da perda de alguém significativo. O que predomina é a ausência ou pouca força ou a perda do investimento amoroso da(s) figura(s) significativa(s), de forma autêntica e persistente. Sublinho perda do investimento amoroso, e não perda do amor, porque os pacientes que estão deprimidos não têm dúvida do amor dos seus pais. O seu drama é sentir que, embora o amando, os seus pais não investiram nele. É isso que causa a depressão, a retirada do valor próprio. “Os meus pais não me sentiram com valor. Não acreditaram nem apostaram no meu valor. Não investiram tempo e capacidade emocional a tentar conhecer-me e ajudar-me. Fá-lo-iam se eu tivesse valor. Não o fazem porque sentem que não vale a pena investir me mim”.

O sintoma que mais caracteriza a depressão é a desvalorização. Desvalorização do próprio em relação a si mesmo, decorrente da desvalorização que sentiu das suas figuras significativas em relação a si mesmo. Não existe depressão sem essa desvalorização das figuras significativas, consciente ou inconsciente. “No meu caso, eu estava mais atenta à questão do abandono, porque era talvez o que me lembrava melhor e o que, na minha história, aparecia de forma mais consciente e evidente: a ida da mãe para o estrangeiro aquando dos meus 2 anos e meio em busca de viver uma paixão, logo após o divórcio com o meu pai. Percebo que o abandono faz parte intrínseca da minha história, das minhas vísceras, e que deixou uma vulnerabilidade onde se vai instalar de forma tão forte os aspectos depressivantes que vivi na relação com os meus pais: o facto de ter sentido, em ambos, palavras e comportamentos que me fizeram não sentir valorizada. Viam-me como uma menina (não como um projecto de mulher), como dependente deles… E veja que este olhar desvalorizador vai desde coisas tão pequenas como a culinária… e a coisas tão grandes como o nunca dizerem que eu era bonita”.

O paciente sente-se desinvestido pelos pais, sentindo que estes dão mais importância às suas limitações, defeitos, incapacidades, insuficiências do que às suas capacidades e talentos. Por isso, a arte na terapia é recuperar o olhar do paciente sobre os seus talentos… Reconhecendo-os e expandindo-os. Insuficiências todos temos, mas podem cair da ribalta por falta de luz sobre eles, como diria Coimbra de Matos.