26/01/2016

Amar

Amar

Publicado originalmente com o título "O amor do outro como trampolim" no Jornal Público, em Dezembro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta

“Foi muito importante para mim poder exprimir o ódio e a descrença que sentia, mesmo em relação à terapia e a si. Senti que você aceitou esta expressão e, ao invés de se assustar e se sentir muito posta em causa, como acontecia com a minha mãe, ou não saber o que fazer comigo e achar que eu estava a exagerar, como aconteceu com o meu pai, você aceitou esse ódio como uma parte natural do meu percurso pessoal. Eu preciso odiar. Preciso queixar-me de tudo e de todos… para depois renascer eu. Só espero consegui-lo. O meu medo é ficar encerrada neste ódio para sempre. Ou ficar sempre a viver nesta oscilação emocional, que me esgota e me faz concretizar menos do que eu queria e tenho capacidade.
“Eu percebo que, para sair daqui onde estou, preciso perceber intimamente que a minha vida só depende de mim, da minha apreciação de mim e da minha energia para concretizar os meus projectos. Mas, para isso, eu preciso tolerar os meus fracassos, as minhas angústias e não me deixar abater por eles e vê-los como a totalidade de mim. São uma parte de mim e são também uma parte dos outros. São uma fase, um momento. E a raiva e o ódio são a expressão no limite da frustração que tais situações me provocam. É essa frustração que não posso deixar que me bloqueie e tome conta de mim. Por isso pensei: e se eu, ao invés de fazer braço de ferro ou me isolar em relação ao meu marido, ou aos meus filhos, ou aos meus pais, ou aos meus amigos, quando as coisas correm mal, diferente do que eu desejava, e se eu, logo que as minhas emoções me deixarem, estabelecesse uma ponte afectiva para eles? Isto é, comunicasse com eles sobre os meus sentimentos, mas sem rancor, sem amuo. Não estou com isto a dizer que não vou viver a raiva e a frustração. São naturais. Assim como o é a frustração dos nossos desejos e vontades. Mas de que vale manter-me amuada à espera que venham dar-me mimo, soluções para a minha vida ou dizer que eu tenho muita razão? Provavelmente não tenho e estou a reagir sem maturidade. Fazer as pazes, sair do encerramento em mim própria e criar pontes para chegar aos outros é fundamental.
“Ninguém tem a razão total. Eu tenho-me alimentado de ressentimento e desejos de abandono e rejeição. O que só tem feito com que me sinta cada vez mais afastada e sem tolerância para quem me rodeia. Essas pessoas não têm o direito de errar, de frustrar-me, pergunto eu? E face a isso amuo ou transformo e reivindico? Eu sei que é mais fácil falar do que fazer, mas alimentar este ressentimento e ilusão de que só noutra relação serei verdadeiramente feliz não me tem levado a lado nenhum.
“Na relação que os meus pais tiveram comigo, não me souberam ajudar a construir instrumentos nem a sentir-me competente para gerir dentro de mim os sentimentos de raiva e frustração. E eles tornaram-se tremendamente poderosos. Mas eu também não consegui aproveitar outras relações para esta aprendizagem. Continuei à espera dessa aprendizagem e dessa conquista na relação com os meus pais. Mas agora, isso tem menos importância. Terei de fazer esse caminho por mim própria. E através de outras relações. Descobrir o que eu acho ser o melhor para mim e não perder tanto tempo a queixar-me/ficar ressentida com a falha do cuidado do outro. Se o outro cuidou mal de mim, cabe-me dizer-lho e, e sobretudo, cuidar eu de mim. Amar-me e talvez assim amar mais os outros… E, porque amor gera amor, ser assim também melhor amada pelos outros.”
Não é fácil sair da espiral de ressentimento, ódio e encerramento em si mesmo. Cada um tem o seu ritmo. Uma relação de amor, terapêutica e/ou outra, ajuda, mas não cura só pelo facto de existir. O amor do outro funciona como base e trampolim. Funciona como um acolhimento seguro face às tempestades internas de cada um. É essencial, sem dúvida, mas, em meu entender, o que verdadeiramente é transformador é o percurso do próprio no sentido de se amar e assumir a inevitabilidade de ser o agente da sua vida.

Não consigo sair daqui

Não consigo sair daqui!

Publicado originalmente no Jornal Público, em Dezembro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta


Apresento hoje o primeiro de dois artigos que, através de um relato imaginário de uma paciente numa sessão, pretendem ilustrar as questões do ódio e da dependência e a possibilidade de amar e conquistar a capacidade de ser-se agente da sua própria vida.
“Não consigo sair daqui. Não consigo deixar de ser quem sou, agir deste modo estúpido e amuado, rancoroso e exigente. Penso que já estou melhor e volto ao mesmo. Uma contrariedade, um sentimento de não ser ajudada, de não pensarem em mim, de não estarem comigo, de não me respeitarem, de não me ligarem, de não me darem atenção… no fundo, de não me sentir amada pelas pessoas que me são significativas. Sim, é isso, eu não consigo controlar este sentimento de não me sentir amada cada vez que acontece algo que sai fora do que estou à espera. Algo que me faz sentir rejeitada, excluída, fora da atenção do outro, fora do cuidado do outro ou incompetente. Eu não consigo controlar o meu rancor, o meu ressentimento, a minha angústia. Mesmo que a razão me diga que estou a exagerar, que não é preciso dar toda aquela dimensão, que tudo se resolvia se eu conseguisse desdramatizar e reivindicar sem estes sentimentos de ressentimento e de amuo. Nem imagina como me fico a sentir humilhada e infantilizada. E face a isso, só posso continuar com o amuo, com o mal-humor, com as queixas e as acusações, de maneira a ver se o outro me pede desculpa e eu volto a sentir algum amor próprio. Entende? Se o outro não me dá razão, a parte de mim que acha que eu estou a ser uma infantil, uma palerma apodera-se de mim toda… e eu sinto-me um lixo e acho que não valho nada e que nunca vou conseguir ser feliz e fazer os outros à minha volta felizes. E fico a odiar essa pessoa. Só me apetece é abandoná-la, magoá-la… agarrando-me à ideia, que não sei se é ilusão ou não, de que sem ela eu seria mais feliz e poderia encontrar alguém que me compreendesse melhor e me fizesse sentir melhor.
“Mas penso agora que talvez o problema seja também meu. Que a insatisfação e a humilhação residam em mim… e sejam reactivadas na relação com os outros. Penso no meu passado e vejo que fui assim sempre… com todos… e aprendi a sê-lo tão cedo quanto na minha infância, com a minha mãe e o meu pai, onde me sentia excluída, com falta de atenção e sozinha com as minhas emoções. Eu era assim com pais, amigos e namorados. Eu sou assim. Não consigo deixar de ser assim… e não creio que a psicoterapia me possa ajudar. Deixei de acreditar. De que me serve pensar nisto? Eu não consigo sair de dentro de mim. Eu não consigo deixar de ser quem sou… e isso faz-me sentir humilhada, esmagada, infeliz e com raiva e ódio de todos. Até de si, que não me pode ajudar. Mas sobretudo de mim. Ódio de mim, pois percebo que era só levar as coisas menos a sério, relacionar-me com mais as pessoas, não ficar rancorosa, não ser tão crítica de mim e dos outros, abraçar outros projectos. Relativizar. Amar.”
Mas como amar quando se sente tanto ódio, tanta humilhação?
Quando existe uma boa relação, terapêutica e/ou outra, persiste o amor e a paciência. Em tais relações de amor, aceita-se o ódio, mas coloca-se limites à agressividade, sem retaliar no amor, o que ajuda a tomar consciência, a diminuir a culpa e a super-exigência internas.
Há marcas das relações precoces significativas que são lentas a desfazer. A relação terapêutica permite a expressão e a vivência de afectos tão fortes quanto o ódio e a desesperança, sem retaliação, sem perda de afecto e mantendo a esperança. O amor do terapeuta pelo seu paciente, pelo novo estilo relacional que estabelece, actua como um contrapeso ao ódio e à destruição internas. Só o amor permite criar sentido na vida. Alimenta o sonho-projecto. Mantém vivas as partes do paciente que são positivas e lança iluminação sobre novos caminhos. Mantém viva a ideia de que é possível a concretização pessoal e a construção de um projecto de vida que o próprio ame. 

Só a Psicanálise não chega

Só a Psicanálise não chega


Publicado originalmente no Jornal Público em Novembro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta

O impacto do estilo relacional parental na construção da identidade e personalidade dos filhos pode constituir-se como uma marca de um passado irrelembrável, no sentido de não consciente porque não pensável ou elaborável pela mente imatura do bebé. Porém, é indesmentível e inesquecível, matriz do estilo relacional (próximo, seguro, espontâneo, livre, confiante, amante… ou o contrário) que os filhos estabelecem (em resposta) com os seus pais… e depois com o mundo que os rodeia.
Tal irrelembrável e inesquecível (como tão bem o caracterizou Miguel Mealha Estrada) perturba a vida do sujeito, limitando a liberdade, a espontaneidade e a iniciativa. Interfere com a capacidade de ser de forma confiante, audaz e sonhadora na vida. Medos, angústias, desesperança não encontram transformação criativa e resiliente.
A Psicanálise, se proporcionando um estilo relacional complementar, concorre para uma expansão do “eu”. A análise de si mesmo e da sua história como foi vivida emocionalmente pelo próprio possibilita a tomada de consciência do desenvolvimento que ficou em suspenso e compreender a raiz da fragilidade, do medo, da dependência e da imaturidade.
Cabe ao analista ajudar a re-situar a pessoa na sua vida, trabalhando em “dupla hélice - repetição e inovação, transferência e nova relação”, segundo Coimbra de Matos, que acrescenta: “A primeira desenvolve-se em espiral redutora, reforçando a adaptação patológica – é iatrogénica; a segunda, em espiral expansiva – e é terapêutica. A primeira interpreta-se para a dissolver – análise da transferência; a segunda gere-se para a expandir e generalizar – desenvolvimento e transferência da nova relação”.
Em meu entender, tal expansão e generalização são possíveis porque a pessoa reconhece o entusiasmo e a confiança do analista pela sua vida (e pela vida em geral). Veiculado de forma clara e genuína, este entusiasmo resgata o sujeito da sua solidão e dos seus medos, incentivando-o a ir além da sua zona de (des)conforto e reconquistar o seu lugar na vida. Psicanálise relacional, talvez ainda a caminho de ser verdadeiramente relacional, onde a certeza do interesse e do entusiasmo do analista pela pessoa é o principal factor de saúde, colmatando a falha inicial.
Porém, a retoma do desenvolvimento não se processa se encerrada na relação psicanalítica. Só a psicanálise não chega. A psicanálise lança as bases da compreensão do próprio e do meio relacional que o rodeia para que a transformação possa ocorrer. A transformação ocorre na vida, no vivido emocional na relação com os outros que se vão tornando significativos. É necessário que exista uma boa aliança entre o impulso para o exterior motivado pelo analista e a coragem do analisando para se colocar em movimento na vida.
Quando tal sucede, o sujeito sente-se mais capaz para se assumir como responsável pela sua vida. É reconhecido e reconhece-se como suficientemente competente para criar e escolher os caminhos que intui serem os melhores para si, aqueles que vão ao encontro da sua realização pessoal. Compreende que permanecer dependente da energia, do interesse e das capacidades de um outro (mesmo que esse outro seja o analista), é persistir num estilo relacional assente na dependência e na desvalorização/inferiorização de si mesmo. Elegendo-se a si mesmo como responsável pela sua vida, caminha para além da precoce necessidade parental insatisfeita.
Neste caminho, há sucessos e fracassos. Não há outra forma de aprender. Tem de estar preparado para as investidas da culpa, da desvalorização e da crítica… sobretudo internas. Mas se a esperança em si o nortear… permanece em movimento na sua vida! Porque a vida, como diz Coimbra de Matos, “é, essencialmente, construção de novidade (…); é, sobretudo, desenvolvimento pessoal e social – este desígnio é o que verdadeiramente motiva o Homem; sem ele, não há vida afectiva, esperança, alegria e felicidade – só passagem do tempo”.

Ajudar no Isolamento Infantil

Ajudar no Isolamento Infantil

Publicado originalmente no Jornal Público

Catarina Rodrigues
Catarina.nasc.rodrigues@gmail.com

Em primeiro lugar, analise se os comportamentos de isolamento do seu filho são recentes e circunstanciais (relacionando-se com um acontecimento identificável) ou se se confundem com a personalidade e história de vida do seu filho (ele sempre mostrou uma tendência para se isolar e se fechar e dificuldade em gerir as frustrações).
Em segundo lugar, faça uma análise sincera e veja como as dificuldades do seu filho se inserem na dinâmica da família. Estará a acontecer alguma coisa na família que possa ser confuso, angustiante ou difícil de gerir para o seu filho? Divórcio dos pais, desemprego, morte, doença grave, conflito entre os pais, conflito pais-filho, conflitos na escola, entre outros. E tal situação é recente ou já sucede há muito tempo? E como é que a gerem com o vosso filho? E entre vocês?
Em terceiro lugar, analise a sua personalidade e as suas próprias dificuldades sociais. É provável que encontre um fio condutor com a personalidade do seu filho.
Se não se sentir capaz de abordar ou de encontrar soluções que auxiliem o seu filho, porque são questões com que também se debateu e que ainda o marcam, ou porque os comportamentos de isolamento e retraimento do seu filho o irritam ou dececionam, lembre-se que pode sempre procurar ajuda no exterior, seja num psicólogo seja num amigo próximo que possa ter uma visão e uma experiência de vida diferentes das suas. O interesse de alguém de fora, com uma ligação emocional significativa e a quem a criança reconhece competências que não reconhece nos pais, pode fazer a diferença. Muitas vezes, há professores ou amigos que, detetando que algo não está bem, procuram ajudar. Espontaneamente, vão atrás da criança, não a deixam isolar-se e convidam-na para situações de integração social. Com carinho e mantendo-se na retaguarda enquanto a criança desta precisa.
E esta é, quanto a mim, a melhor estratégia: não compactuar com a tendência ao isolamento, nem arranjar quaisquer justificações para ela (seja na personalidade, seja nas vivências da criança). Isolar-se de forma constante e persistente, evitando o contato social, não é um comportamento normal. Ponto final. E a melhor ajuda que podemos dar é fazer a criança a sentir-se integrada/amada, competente/interessante. Estas crianças querem ser resgatadas do seu isolamento. Não o procuram por prazer, mas devido ao seu sofrimento. O isolamento traduz o facto de terem chegado a um beco sem saída.
Fale com carinho e sem culpa com o seu filho sobre esta sua tendência e procure ver como é que ele a entende dentro de si mesmo. E depois, faça-lhe ver que o isolamento nada resolve, até agrava o sentimento interior de mal-estar, como ele próprio o sabe. E incentive-o a procurar amigos com que goste de conversar e de brincar e a integrar-se nas brincadeiras, mesmo que sinta que as coisas não correm bem de início. Todos temos o nosso ritmo e o mais natural é que, se não desistirmos, a sintonia emerja.
E em quaisquer situações em que esteja com o seu filho, não feche os olhos quando repara que ele se está a isolar. Ajude-o a integrar-se, mas sem grande alarido. Aproveite a oportunidade para conversar com ele, por exemplo sobre algo que ele gosta de falar ou sobre alguma situação divertida porque passaram ou que estão a ver. Falar sobre as dificuldades dele pode ser contraproducente. É mais importante focar algo de que ele goste e que sirva de desbloqueador do retraimento. Em situação social, incentive a conversa ou brincadeira com as pessoas de quem ele gosta. E gradualmente vá deixando de participar na conversa ou na brincadeira, à medida que o vê mais à-vontade. Demonstre o seu orgulho nos seus progressos. A confirmação e o estímulo ao desenvolvimento de novas competências, associada ao reconhecimento, ao entusiasmo e à crença inequívoca da capacidade do seu filho em transformar a situação, são o primeiro passo para a refundação de um novo estilo relacional assente na confiança.

Isolamento Infantil

Isolamento Infantil

Publicado originalmente no Jornal Público 

Catarina Rodrigues
Catarina.nasc.rodrigues@gmail.com

Não é raro conhecermos uma criança que se isola no recreio, que se retrai no contacto com os outros meninos, que fica muito calada na sala, quase passando despercebida, e que não mantém o contacto olhos nos olhos prolongado. São crianças que podem ser alvo de troça, ou de bullying, ou de evitamento por parte dos outros meninos (por exemplo, não são convidadas para as festas de aniversário dos colegas ou são deixadas de parte nas brincadeiras do recreio). Normalmente, são crianças que preferem o contacto com o adulto, a quem sentem como securizante. São crianças com pouca voz, pouca presença, pouco carisma. Em duas palavras, são crianças sobretudo inseguras e sós. Nem sempre os pais destas crianças as trazem ao psicólogo, encontrando justificações na personalidade dos seus filhos, ou numa fase de desenvolvimento que estarão, supostamente, a passar, ou identificando-se a eles (“eu também era assim”). Porém, em meu entender, o isolamento social é sempre um sinal preocupante. Somos seres de relação e é na nela que encontramos prazer, dinamismo, desafio e crescimento/expansão.
O desenvolvimento infantil desejavelmente ocorre no sentido positivo e expansivo: em termos da expressão da vontade e das capacidades próprias; do reconhecimento das competências sociais, descobrindo no outro um parceiro de brincadeira e de descoberta; de desejo de explorar o meio que o rodeia, humano e físico. Quando a criança se sente alegre, segura e confiante, o mundo está ao seu alcance para ser descoberto e é-lhe natural transformar as dificuldades em desafios para ultrapassar. Tem mais capacidade para gerir as diferenças e os temperamentos das outras crianças. Não se isola; transforma. Não se assusta perante a dessintonia relacional e trabalha ativamente no sentido de alcançar nova sintonia.
Quando uma criança se isola é porque sente dificuldade em gerir as exigências emocionais que a relação com os outros lhe coloca. Isso pode acontecer por muitas razões, mas percebemos de antemão que a sua auto-estima está fragilizada e que tem um estilo inseguro e evitante de lidar com os outros. Isola-se e evita porque sente que a relação com o outro é de uma exigência emocional à qual não consegue dar a resposta satisfatória – não consegue sentir-se competente na sua capacidade de ser interessante e gostada pelo outro. Sente-se falhada e aquém. Sente-se diminuída e inferiorizada.
A criança procura proteger-se emocionalmente da deceção e da humilhação sentidas no confronto direto com a qualidade dinâmica das relações (têm altos e baixos) e face à tomada de consciência da sua inabilidade. Efetivamente, fraca resiliência emocional faz com que a criança sinta de forma muito intensa e profunda as dessintonias na relação com os outros. Não são vividas como parte do processo/vida (onde sempre existe uma oscilação entre sintonia e dessintonia, até se criarem novas sintonias), mas como falhanço pessoal e relacional, corroborando internamente a crença no seu fraco valor e competência para gerir os desafios e as frustrações nas relações com os outros.
À deceção geralmente está associada a zanga face a si mesmo e ao outro, muitas vezes inconsciente, que faz com estas crianças tenham um sentido crítico (culpa) em relação a si mesmas, mas também em relação aos outros, destruidor, dificultando a emergência de uma perspetiva mais construtiva (ao invés de destrutiva) e de estratégias de gestão das relações mais criativas e plásticas.
Da minha prática clínica, estas dificuldades manifestam uma intricada ligação entre características genéticas (introversão) e estilo relacional inseguro e evitante desenvolvido na relação de vinculação com as figuras precoces significativas (que provavelmente também apresentam um estilo maioritariamente inseguro e evitante de relação), beneficiando de um trabalho psicoterapêutico assente no entusiasmo pelo estímulo das competências que ficaram em suspenso no desenvolvimento do sujeito.

Lidar com a agressividade e a frustração do seu filho - II

Lidar com a agressividade e a frustração do seu filho - II


Publicado originalmente no Jornal Público, em Fevereiro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta


Na aprendizagem da gestão da zanga e da frustração, o principal papel dos pais é: por um lado, dar significado ao comportamento da criança: “Eu percebo que estejas chateado e zangado. Eu percebi que estavas a fazer uma coisa gira, mas agora temos de ir mesmo tomar banho, porque temos de ir jantar. Além disso, podemos ir brincar logo a seguir”; e, por outro, ajudá-la a contê-lo e a dirigi-lo de forma mais correcta: “Não podes bater nos pais, porque os pais também não te batem. Nem deves bater em ti mesmo. Eu não quero que o faças. Estás zangado, eu já percebi. Todos nós nos zangamos. Mas tens de te acalmar e explicar o que se passa. Se continuas assim, eu não consigo perceber e não te consigo ajudar melhor. Calma”.
A contenção física com amor nestas situações é importante: faz com que a criança se sinta segura e amada. O toque tem o poder de acalmar e esse é o primeiro passo a fazer com a criança. Não o deixe sozinho com a sua fúria. Aliás, se o coloca no chão ou na cama (mesmo que seja porque ele estava a contorcer-se para ir para aí) ou o entrega ao outro pai e vai-se embora, o choro e a zanga aumentam. Ele sente-se descontrolado e não sabe o que fazer. Precisa de si, de sentir que não o abandonou, que o está a tentar acalmar e que lhe permite viver a zanga na segurança do seu colo.
Para isso, tem de estar calmo e gerir dentro de si as emoções fortes que tal situação provoca. Efectivamente, a zanga da criança provoca em nós mesmos zanga e fúria. Espelha o que ela projecta em nós. Sentir raiva, desespero, fúria é natural nesses momentos. Somos humanos e sentimos a agressividade que nos está a ser dirigida naquele momento… mesmo que seja do nosso filho. Contudo, cabe-nos a nós gerir essa agressividade e frustração. Não é fácil, mas é possível.
Em primeiro lugar, é importante perceber que a fúria que sentimos não é nossa. Traduz o estado de alma do nosso filho. É ele que está descontrolado, furioso e frustrado. Nós estamos ao seu lado para o ajudar a lidar com tais emoções. Para isso, temos de perceber que este estado passa, mas que demora algum tempo. É como um carro que acelerou ao máximo. Não desacelera num segundo. Temos de lhe dar tempo e ir desacelerando aos poucos. Também não vale a pena descontrolarmo-nos e batermos no carro ou gritarmos com ele. Não adianta de nada e só faz com que nos sintamos ainda mais irritados e impotentes… e o carro continue descontrolado.
Em segundo lugar, evite a auto-centração: o seu filho não está contra si, nem a desobedecer-lhe; está descontrolado e a aprender a gerir as suas emoções… consigo.
Por isso, acalme-se. Respire fundo e reconheça que este momento vai passar e que você vai ajudar, mas primeiro é preciso que haja uma alteração do estado de espírito de ambos. Faça algo que diminua a tensão. Ande com o seu filho para outra divisão da casa. Fale baixinho, explicando que ele está zangado, mas que se vai acalmar. Ou fale de algo que ele goste. Ou não diga nada e abrace-o. À medida que você mesmo se acalma, o seu tónus muscular também relaxa e você volta a sentir ternura pelo seu filho e a conseguir perspectivar a situação do ponto de vista dele: é ele que está zangado, não é você. E tudo isso contribui para tranquilizar o seu filho.
Quando ele voltar a estar calmo e alegre, você que pode retomar a conversa em suspenso: a ida para o banho. E faça-o de forma tranquila. Não receie nova fúria. Normalmente, o seu filho gosta. Só que às vezes, enerva-se, porque fica frustrado. Está a aprender consigo que a frustração pode ser transformada e que nos podemos voltar a sentir bem… e que não perdemos o amor do outro nessas situações.
Finda a situação, e o banho tomado, é o momento da aprendizagem. Fale da situação com tranquilidade: percebeu que ele estava mesmo zangado, mas que ele já sabe que àquela hora tem de tomar banho. E que, como os crescidos, não deve bater, pode explicar.

Lidar com a agressividade e a frustração do seu filho - I

Lidar com a agressividade e a frustração do seu filho - I

Publicado originalmente no Jornal Público, em Fevereiro de 2014

Catarina Rodrigues
Psicoterapeuta
A partir dos 18 meses do seu bebé, muitos são os pais que se queixam de “birras” terríveis quando se diz “não” ao bebé, ou choro dilacerante quando se vai dar banho ou quando é para sair do banho ou é para vestir ou despir, etc., etc. É-vos familiar este cenário? Provavelmente, até esta altura, apesar de algumas manifestações veementes de vontade do vosso filho, tinham conseguido, sem grande “drama”, transformar a situação que desencadeava o seu “não” num “sim a dois”, puxando pela vossa criatividade e entusiasmo para incluir o vosso filho na decisão (estimulando-o para ir buscar os bonecos preferidos ou colocar a espuma na água).
Contudo, de repente, sem razão aparente, e sem que vocês tivessem mudado a vossa conduta, as palavras doces, o levar os brinquedos para o banho, deixar o bebé colocar o creme depois do banho em colaboração convosco, tudo isso deixou de funcionar… pelo menos, numa parte das vezes… e apareceram choro e gritos e levantar das mãos e bater dos pés, em que parece que nada funciona: nem palavras calmas; nem agarrar o bebé firmemente contra o peito e falar calmamente; nem falar em tom zangado, o que, aliás, parece até potenciar um choro mais forte; nem dizer com voz clara e firme: “Tens de te acalmar, é só ir para o banho, costumas gostar, a mãe vai levar os teus brinquedos como de costume”. Nada. Pelo menos, nada disto funciona de imediato nas primeiras vezes…
É natural que, num primeiro impacto, sobretudo se for um primeiro filho, se questionem sobre o que se está a passar, o que estão a fazer de menos bem, ou como hão-de lidar com tal agressividade que é projectada para vocês… e que também gera em vós zanga e frustração… e desespero. Mas, calma, nada que a paciência e a firmeza dos pais não consigam ajudar a criança a modular… e a crescer.
O modo como sinto, observo e entendo tais comportamentos leva-me a pensá-los como expressão da contrariedade e da zanga face à frustração. Ou seja, em palavras mais claras, como um: “Eu não quero e estou furioso por me estares a impedir de fazer o que eu estava a fazer para me levares para o banho… que, neste momento, eu detesto”. Noutras situações, a zanga aparece sem que se consiga perceber ao que está associada. A criança parece descontrolada aparentemente sem razão. Mas pode, por exemplo, estar mais sensível porque está doente ou iniciou a creche ou os pais andam tensos.
A família entrou numa nova etapa do desenvolvimento: lidar com a frustração e a agressividade! Palavras-chave: paciência e coerência.
Da óptica do bebé, levantar a mão aos pais, chorar e gritar desalmadamente, bater com os pés no chão são comportamentos que manifestam a zanga. Não são desautorizações face aos pais, nem um indício de perda de controlo destes sobre os filhos, nem que estes vão crescer como marginais que batem nos pais. Nesta etapa do desenvolvimento, são comportamentos espontâneos. Ninguém precisa ensinar uma criança a bater para que o comportamento de levantar a mão surja quando está mesmo zangada… e dirigido seja a quem for. É dessa forma que ela manifesta o quanto está furiosa e não quer aquela situação.
Tais comportamentos não devem realçados pelo adulto e base para uma leitura negativa da personalidade do filho (“És mau”) ou culpa e ameaça à continuidade do amor (“Se continuas a fazer isso, a mãe deixa de gostar de ti”). Afinal, é bom que saibamos expressar a zanga, mas temos de aprender como a modular. E isso aprende-se, primeiro, na família: «Não podes bater no pai e na mãe. Os pais ficam zangados contigo. Os pais também não te batem. Eu entendo que estejas zangado, mas tens mesmo de ir para o banho. Vamos procurar fazer isto o melhor possível os três, mas tens de ajudar os pais”.
Aprender a gerir a agressividade (emoção básica) é a nova etapa no amadurecimento da criança, que requer novas estratégias por parte de todos, que, com amor e paciência, vão descobrir.