07/03/2013

O Poder da Fantasia


Catarina Rodrigues
Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta

In Revista Pais & Filhos, Fevereiro de 2013


«- Mamã, vai haver uma festa de carnaval na minha escola e a professora disse para irmos mascarados. Eu estive a pensar e queria mascarar-me de fada!
E dito isto, Leonor correu pela casa toda, dançando e cantando como se fosse uma fada. Pelo menos, a fada que tinha na sua imaginação. Ondulava a mão direita pelo ar como se empunhasse uma varinha de condão imaginária e dava gritinhos de alegria, apontando para um e outro lado, provavelmente lançando feitiços encantados. A mãe sorriu, ao ver a filha tão contente e imaginou-a com um vestidinho branco e umas asinhas presas às costas. Sem dúvida, ficaria uma linda fada!
Enquanto a filha dançava e cantarolava, a mãe ficou a pensar porque ficava a filha tão contente com a possibilidade de se mascarar. Sem se dar conta, começou a pensar na sua infância. Não queria dizer que não tivesse brincado ao Carnaval mais tarde, já adulta, mas existiam datas que tinham o sabor diferente da infância e que ficaram registadas dentro de si, à medida que crescia, como momentos de uma magia que só a infância - com a sua credulidade, inocência e fantasia - pode ter.
Deu por si a sorrir nostalgicamente recordando um fatinho de pantera cor-de-rosa que o pai lhe havia trazido, era ainda ela pequenina, e de como ele tinha tido um significado tão especial para ela. Lembrou-se também de se ter mascarado de dama antiga e de homem barrigudo (em que tinha colocado uma imensa almofada na barriga, que lhe estava sempre a cair com as correrias!). Já não se lembrava disso há tanto tempo… Incrível, ainda podia sentir dentro de si o quanto se tinha sentido linda ou divertida com tais vestimentas! E a algazarra que tinha sido com os amigos! Todos mascarados, fingindo que eram este ou aquele personagem! Corriam pela rua como loucos, tocando às campainhas e exibindo os seus fatos. Fantástico! Por um dia, eram as personagens que alimentavam diariamente a sua fantasia!
Pensou há quanto tempo não se mascarava. No carnaval, esta possibilidade de brincar ao faz de conta é regra para pequenos e graúdos, demonstrando bem como o brincar é importante, possibilitando sair das regras do quotidiano e agir de forma espontânea e divertida.
Ficou a pensar no que tinha de especial a possibilidade de vestir uma pele que não a nossa? Olhou para a filha/fada e compreendeu que vestir o disfarce tornava a fantasia materializada e exposta ao mundo real. Saía do mundo privado para o foro social/relacional. E vestir o disfarce era qualitativamente diferente de brincar com uma boneca fada. Naquele momento, a filha era uma fada. E essa fantasia era socialmente aceite. Vestida de fada, a filha podia agir como uma fada e ser diferente de si mesma. O disfarce permitia-lhe ir para além de si mesma e das suas características
A fantasia faz parte integrante da vida mental
Brincar faz parte da natureza animal, mas brincar ao faz de conta é algo específico do ser humano. Desde muito cedo no nosso desenvolvimento que brincamos ao faz de conta, mediados ou não pelos brinquedos. Com efeito, podemos manipular brinquedos – animais, pessoas, coisas - e através deles viver, na nossa imaginação, grandes aventuras. Mas, também podemos imaginarmo-nos como determinado personagem ou animal e utilizar o nosso corpo para o imitar. E podemos, ainda, disfarçarmo-nos de determinado personagem ou animal!
Como estamos a chegar ao Carnaval, vamos pensar no papel do disfarce.
O disfarce como que materializa o desejo de ser um certo personagem, de nos “fantasiarmos”, ou seja, de podermos nós mesmos materializar a nossa fantasia e brincar com ela. Fica-se, então, num mundo intermédio, que já não é só a fantasia privada nem é o mundo real. A fantasia entra na realidade, sem que, no entanto, se confunda com esta. Estamos apenas a fingir e a representar um papel, mas por momentos é como se fossemos esse personagem, exibindo as suas características e comportamentos.
A escolha do disfarce é relevante para a criança. Normalmente, representa um super-herói da sua história preferida, mas pode ser também alguém ou algum personagem com que se identifica e que valoriza ou um personagem que lhe permite extravasar afectos negativos e angustiantes em segurança (como no caso da bruxa ou do fantasma).
Através da fantasia e brincando ao faz de conta, a criança supera as suas limitações – pode ser a linda princesa cobiçada, e não a menina tímida que pouco fala com os rapazes da sua escola; pode ser o super-homem forte e corajoso, e não o menino gozado pelos colegas. Ou seja, pode colocar no disfarce como que um alter-ego, que lhe permite expor um outro lado de si mesma inibido ou reprimido. O que pode ter repercussões na relação com os outros. Efectivamente, sentindo-se mais à-vontade através do faz-de-conta, a criança pode experimentar comportamentos diferentes dos habituais e ganhar mais confiança e segurança na relação com os outros.
O disfarce permite, ainda, manifestar comportamentos com uma intensidade que normalmente levariam a um ralhete dos pais/professores. Ou seja, o disfarce permite sair dos “limites” próprios (entenda-se das características e das competências do próprio) e dos limites impostos pela realidade, o que ajuda a criança a auto-regular-se e a aprender os seus próprios limites.
Em todos os casos, o disfarce representa o personagem que melhor traduz a vontade de ser crescido, os impulsos amorosos ou agressivos, de cooperação ou de competição, de valentia ou de medo, permitindo à criança, pela identificação ao personagem, dar largas a comportamentos que suscitam curiosidade e experimentar, na segurança do faz de conta, as complexidades relacionais que vai observando e vivendo com adultos e outras crianças.
Compreendemos, pois, como o brincar e o imaginar são fundamentais para o desenvolvimento humano. Afinal, quando somos pequeninos o brincar permite-nos experimentar o mundo em segurança! Ser criança é ser pequenino, é possuir competências em maturação e estar ainda em desenvolvimento… e o mundo, sobretudo o mundo relacional em que a criança está inserida, é complexo. Brincando, imaginando, disfarçando-se, a criança pode sair da sua realidade. Pode ser em simultâneo ela própria e os pais, por exemplo, e imitar/representar os comportamentos destes que a angustiam, entristecem ou alegram e os seus próprios. Pode ensaiar comportamentos de separação, de valentia, de agressividade, de amor, de ódio, de extravasamento total… pode tudo. Porque no final da brincadeira, volta a ser ela própria… mas, provavelmente, não a mesma de antes da brincadeira. Antes um si próprio “acrescentado” com as ideias, as emoções, as sensações, as aprendizagens internas que a brincadeira lhe trouxe.
Da minha própria experiência, as crianças pedem sempre o disfarce que lhes faz sentido. Quando o adulto respeita o pedido da criança e a deixa viver a sua fantasia em pleno, esta vem responder a necessidades íntimas do desenvolvimento daquela criança. O que quero dizer, é que as brincadeiras e os disfarces não são escolhidos por um acaso ou só porque está na moda, mas porque, de alguma forma, permitem viver emoções que são importantes à criança… Efectivamente, nenhuma criança brinca só por brincar! A criança escolhe a brincadeira/o disfarce que melhor vem responder às suas necessidades internas e às necessidades que vão surgindo no seu contexto afectivo, social, cognitivo, à medida que vai crescendo. Isso pode não ser óbvio para o adulto que a observa. Nem tem de o ser. É o maravilhoso do simbólico: em grande parte, permanece oculto e no domínio da privacidade dos sonhos, necessidades e desejos infantis.
É importante mascarar?
«- Rodrigo, já te disse que não faz sentido isso de te mascares…
- Mas, mãe, todos os meus colegas se vão mascarar lá na escola…
- Está bem, mas nós não temos essa possibilidade, já falámos sobre isso. Além disse, sabes que eu e o teu pai não concordamos com isso. É um gasto de dinheiro estúpido. Se tu quiseres, a mãe pinta-te uns bigodes ou o que tu quiseres…
-Não, deixa estar, o que eu gostava mesmo era ir de Zorro… Com uma espada…
-Não dá, filho. Olha, a mãe e o pai também nunca se mascararam e não foram menos felizes por causa disso. Tu sabes que na nossa altura se começava a trabalhar cedo, e não havia tempo para brincadeiras. Tu já tens muita sorte, Rodrigo.
Rodrigo virou as costas e encaminhou-se para o seu quarto. Sentia-se infeliz e incompreendido, mas não percebia bem porquê. Queria tanto mascarar-se de Zorro… Era o seu personagem preferido. Adorava os desenhos animados. Levantava-se bem cedo para os ver. Não tinha nenhum boneco Zorro, porque os pais não achavam importante ter-se brinquedos que não fossem didácticos. Achavam mais importante comprar os livros e a roupa para a escola. O Rodrigo percebia, em parte. Sabia que tinham pouco dinheiro e que não se podia gastar à toa. Mas queria tanto, tanto o Zorro. Felizmente, tinha uma coisa que não custava dinheiro nenhum aos pais: a sua imaginação. E imaginava-se de Zorro. Imaginava-se vestido de Zorro, com a espada e tudo! Às vezes, no escuro do seu quarto, enquanto brincava imaginando, dizia a si mesmo que quando fosse grande havia de ter um disfarce de Zorro e um boneco do Zorro e os filmes do Zorro… e, se tivesse um filho, nunca lhe ia dizer que não era importante mascarar-se. Ia deixar o filho mascarar-se e ter brinquedos, porque só uma criança sabe como os brinquedos e os disfarces são importantes. E pensava que talvez os seus pais, por não o compreenderem, nunca tivessem sido verdadeiramente crianças…»
Por vezes, o adulto pode sentir dificuldade em não se “intrometer” na brincadeira da criança e procurar influenciá-la de alguma forma, escolhendo disfarces ou incentivando a que a brincadeira vá num ou noutro sentido. É quase inevitável, porque dentro de si permanece esse apelo maravilhoso ao brincar como quando era criança! Ou seja, o seu lado infantil vem ao de cima e, sem se dar conta, começa a brincar! A criança fará o filtro e geralmente diz: «Não, mãe/pai, não é nada disso. É assim…» e recoloca a brincadeira de acordo com a sua imaginação, e não a dos pais.
Outros pais têm dificuldades em brincar e podem ter dificuldade em compreender e aceitar as brincadeiras dos filhos e mesmo compreender a necessidade de brincar. Provavelmente, terão sido crianças impedidas de brincar ou cuja dureza da sua realidade lhes impossibilitou imaginar cenários alternativos e fantasiosos. Há situações de vida em que é difícil imaginar e brincar…
Mas, a fantasia faz parte integrante da vida mental do ser humano.
Quando a criança diz quero mascarar-me de fada, Zorro, homem-aranha, super-homem, piloto do Faísca Macqueen, etc., está a identificar-se a um herói dos seus desenhos animados ou história preferidos. Está a identificar-se aos valores, às características e comportamentos desse personagem. Quando veste o disfarce desse personagem e age como ele, sente-se como esse personagem. E a sua imaginação é alavancada e potenciada com a brincadeira… e, ainda que invisível aos olhos de adultos que reprimiram a criança que há em si, em redor da criança que brinca, surge todo um incrível mundo de fantasia. É esse o poder da imaginação. De nos transformar e de transformar o meio e as pessoas em nosso redor de acordo com a nossa fantasia.
Os desenhos animados exploram muitas vezes este fenómeno. Um personagem está a brincar e à sua volta tudo se vai transformando, aparecendo o cenário ideal para as aventuras imaginadas. É esse o papel da imaginação – criar imagens, cenários, personagens que não existem fisicamente, apenas na cabeça da criança, e que transformam o meio e as pessoas em redor em cenários e personagens da fantasia da mente da criança.
A este propósito, não sei se já vos aconteceu regressar a um sítio onde brincaram quando eram crianças e já não iam há muito tempo? Por exemplo, a escola primária onde andaram e o jardim onde iam brincar com os amigos e onde tantas aventuras foram imaginadas. Verificarão que é espantoso como esse sítio parece diferente daquele que guardam na vossa mente. Não é só o facto de parecer mais pequeno; é também o facto de parecer menos brilhante e vivo. É na vossa recordação que esse sítio aparece com a coloração viva e alegre, misteriosa e aventureira da vossa infância, de acordo com as brincadeiras que ali fizeram. No fundo, o sítio consiste apenas num cenário que a imaginação, através do brincar, anima e traz colorido! Quando vestimos um disfarce é igual. O disfarce é apenas o pano de fundo. A imaginação da criança é que lhe traz vida e realismo.
Quando o vosso filho vos pedir para se mascarar, lembrem-se que o disfarce, tal como o brinquedo, permite à criança sair do mundo estritamente perceptivo, das normas e regras sociais, dos seus limites, características e circunstâncias. O disfarce permite brincar como se se estivesse a sonhar acordado. E, no meu entendimento, tem sido essa capacidade humana que ter potenciado a nossa incrível evolução. E, agora, digam-me, quantos de vós não guardam na vossa recordação imagens, sabores, sensações vividas quando brincavam? Lembram-se de como eram capazes de transformar o mundo no local da vossa fantasia e de como isso vos dava um prazer incrível? E de como, depois, da brincadeira, se sentiam satisfeitos e felizes? Por isso, vos desejo, a vós e aos vossos filhos, BOM CARNAVAL!

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